A Cidade sem Pobreza: O Rendimento Básico Testado em Dauphin, Canadá

A Cidade sem Pobreza: O Rendimento Básico Testado em Dauphin, Canadá

14 de Julho, 2016 0

Dauphin

Entre 1974 e 1979, o Canadá testou um “mincome” – um rendimento básico garantido – em duas cidades de Manitoba, Dauphin e Winnipeg, à semelhança de outras experiências que estavam a ser realizadas nos Estados Unidos, em Denver e Seattle, na altura.
A economista Evelyn Forget foi uma das poucas pessoas a estudar o impacto sociológico desta experiência, particularmente no caso da pequena cidade de Dauphin de cerca de 10 000 habitantes.

“Sou professora de economia na Faculdade de Medicina da Universidade de Manitoba e o meu principal interesse são os custos do sistema de saúde. Não é necessário trabalhar-se na saúde durante muito tempo para nos apercebermos que a maioria dos casos que se estão a tratar são consequências da pobreza. As pessoas estão doentes porque são pobres. Eu conhecia a experiência Mincome que ocorreu nos anos 70, mas não sabia que resultados tinham emergido de lá. Questionei-me se haveria maneira de “retroceder” e descobrir os participantes de modo a observar que efeito tinha tido o rendimento garantido nas suas vidas e nas dos seus filhos.”

O que foi peculiar à experiência realizada em Dauphin foi o facto de todas as famílias terem participado nela e de terem recebido um reforço salarial se os seus rendimentos fossem inferiores a um certo valor, explica a economista. Nem todos receberam o dinheiro, mas todos receberam a promessa de que, se os seus rendimentos fossem demasiado baixos, receberiam assistência.”

Na altura, não foi realizado qualquer relatório final sobre o projeto. “Foi dito aos investigadores para arquivarem a informação para investigações futuras. E, efetivamente, o que eles fizeram foi esvaziar os arquivadores e colocar todos os papéis em caixas de cartão.”
As caixas ficaram esquecidas até Evelyn Forget as redescobrir em 2009. “Deparei-me com 1800 caixas cheias de dados muito mal organizados. Nunca ninguém tinha elaborado uma base de dados e não tinha sido realizada qualquer análise.”

A economista apercebeu-se, assim, da impossibilidade de realizar o seu estudo com base nesta informação, mas teve uma ideia: utilizar os dados do seguro de saúde universal – introduzido por volta desta altura no Canadá –, todos eles organizados, digitalizados e abrangendo áreas diversas como a educação, o emprego e a saúde.
“Consegui encontrar [dados sobre] todas as pessoas que viviam em Dauphin na altura, durante este período específico.”

Evelyn Forget

Os resultados mais marcantes da pesquisa

Evelyn quis saber que efeitos teve o rendimento garantido na qualidade de vida das pessoas – se eram mais saudáveis, se ficavam mais tempo no ensino, entre outros fatores.

Saúde Física e Mental

“A primeira coisa que fiz foi examinar as taxas de hospitalização. E descobri que desceram cerca de 8,5% para o grupo de teste em Dauphin, em relação ao grupo de controlo correspondente.” Isto deveu-se à diminuição dos acidentes, das lesões e das hospitalizações por problemas de saúde mental.

Licenças de Maternidade

A investigação de Evelyn não analisou os dados relativos ao trabalho, que já tinham sido analisados por economistas nos anos 80. “Eles descobriram que houve dois grupos de pessoas a trabalhar menos horas”, conta. “As mulheres casadas usaram o rendimento garantido para ‘comprar’ maiores licenças de maternidade.” Ou seja, com a ajuda do mincome, estas mulheres ficaram mais tempo em casa a cuidar dos seus recém-nascidos.
“Na altura, acho que o direito legal eram quatro semanas. E é um facto bastante interessante porque, como sociedade, decidimos que queremos apoiar licenças parentais mais longas. E elas, efetivamente, anteciparam essa mudança de políticas.”

Educação

Por outro lado, os adolescentes, especialmente os do sexo masculino, foram o segundo grupo a reduzir o número de horas trabalhadas. “Foi esse o início da minha investigação. Perguntei-me, se não estão a trabalhar, será que isso significa que permaneceram mais tempo no ensino? Um dos resultados [da minha investigação] foi que as taxas de conclusão do ensino secundário aumentaram durante o estudo”, explica a economista. “Descobrimos que os jovens, em particular os de famílias com rendimentos baixos, estavam sob bastante pressão para se tornarem autossuficientes o mais cedo possível. Quando o mincome surgiu, algumas famílias decidiram que podiam permitir aos seus filhos continuar no ensino secundário durante mais tempo. Por isso, em vez de abandonarem a escola aos 16 anos e começarem a trabalhar a tempo inteiro, estes jovens ficaram no ensino até terem 18 anos, até concluírem o ensino secundário.”
Portanto, houve uma mudança positiva para os jovens de 16 e 17 anos, que entraram no mercado de trabalho mais tarde e com mais qualificações.


Entrevista de Evelyn Forget no Public Radio International (PRI)

Será que as pessoas continuaram a trabalhar porque sabiam que o programa iria acabar?

“O sistema previdencial que existia na época criava fortes desincentivos ao trabalho. Na altura, cada dólar ganho significava um igual decréscimo nas prestações sociais. O mincome criou um incentivo ao trabalho porque apenas $0,50 seriam retirados. Sem a certeza de que o programa continuaria, a maioria das pessoas acreditava, na altura, que este projeto-piloto seria introduzido de um modo mais generalizado no final da década. Não considero o argumento do ‘programa temporário’ muito convincente. Até é, às vezes, contraditório: se as pessoas forem irresponsáveis, será que elas vão projetar quatro anos no futuro para decidir como agir agora?”

Trabalho

À semelhança dos resultados das experiências nos Estados Unidos, também no Canadá se observou que foram poucos os que deixaram de trabalhar. “Poucas pessoas deixaram de trabalhar e, mesmo entre os que tinham empregos a tempo inteiro, quase ninguém reduziu a sua carga horária.

Isto deve-se ao facto de que um rendimento garantido bem estruturado (…) cria incentivos para as pessoas trabalharem porque complementa os rendimentos dos trabalhadores pobres e é muito mais eficaz do que todos os outros tipos de assistência social.”

De qualquer forma, a investigadora, assim como Sam Altman, presidente do Y Combinator de Silicon Valley, desafia a visão generalizada do trabalho como um mal necessário. “Se olharmos para os séc. XVIII e XIX, alguns dos grandes avanços científicos e alguns dos grandes progressos culturais foram feitos por pessoas que não trabalhavam. (…) Estas eram pessoas que dispunham de meios da sua família suficientes para se sustentarem. Não tinham, certamente, de sujar as suas mãos fazendo os tipos de trabalho que tomamos por garantidos. Não acho que estes indivíduos se sentiam inúteis; não considero a sua contribuição insignificante. Acho que foi muito importante para o desenvolvimento do mundo.”

Porque foi esquecida a experiência de Dauphin

“Os governos mudaram. A experiência foi iniciada por governos de centro-esquerda no início dos anos 70. Nos finais dos anos 70, estes governos foram substituídos por governos de centro-direita(…), o que se deveu em grande parte aos eventos económicos dos anos 70 – inflação, desemprego, aumento do preço do petróleo, taxas de juros elevadas. Isto significava que os governos estavam menos interessados na luta contra a pobreza e mais interessados em outros problemas, como estabilizar o nível de preços.”

Testemunhos de quem participou no programa

A equipa de Evelyn entrevistou os participantes e as pessoas que trabalharam no programa. “Muitos participantes lembram-se e são gratos pelas oportunidades que o mincome lhes proporcionou, tanto a eles como aos seus filhos. Todos eles mencionaram a educação – porque puderam receber formação profissional ou porque os seus filhos continuaram na escola. A maioria das pessoas com quem falei achava que [o programa] deveria ter continuado.”
Uma mãe solteira, que a economista entrevistou, recebia prestações sociais, na altura em que o mincome foi introduzido. “De cada vez que ela solicitava uma formação profissional, diziam-lhe para voltar para casa e tomar conta dos seus filhos e que o sistema cuidaria dela”, recorda Evelyn Forget.
Quando surgiu o mincome, esta mãe já podia fazer o que quisesse com o seu dinheiro. Matriculou-se num curso de ciências documentais na universidade, o que deu origem a um trabalho em part-time, que se converteu num a tempo inteiro e que culminou numa carreira como bibliotecária-chefe. “Quando falei com ela, tinha-se reformado há pouco tempo e estava extremamente orgulhosa por ambas as suas filhas terem acabado a universidade (…) e terem seguido um tipo de vida muito diferente.”

O rendimento básico incondicional no panorama político atual

Segundo a economista, “muitas pessoas sentem-se desconfortáveis com o rendimento básico, não obstante as provas. Falei com muitas pessoas que apoiam o conceito, mas muitas mais acreditam que é demasiado dispendioso e que todos deviam trabalhar para a sua subsistência. Como era o caso nos finais dos anos 70, muitos acreditam que não conseguimos proporcionar justiça social.
Mas as pessoas estão a falar sobre o rendimento garantido de novo. Aparece na imprensa e no debate público, regularmente.”

Em 2016, o rendimento básico incondicional (RBI) tornou-se, oficialmente, uma resolução do partido liberal canadiano de Justin Trudeau. A cidade holandesa de Utreque testará, em 2017, um rendimento básico incondicional.

“De facto, um bom número das melhores reformas que temos feito na segurança social, ao longo dos anos, assemelha-se em grande parte a um rendimento garantido, embora se tenham concentrado em pequenos grupos da população. No Canadá, os idosos com rendimentos baixos recebem um suplemento que é como um rendimento garantido para os idosos. As pessoas com filhos dependentes recebem um abono de família. Nenhum destes apoios é tão importante quanto deveria ser, mas eles existem. Acho que o próximo passo é considerar um rendimento garantido para o resto da população.”

Países em desenvolvimento, como Malawi e a Índia, também testaram programas semelhantes.

“Quando se oferece às pessoas dinheiro sem quaisquer condições, em termos gerias, elas gastam-no do modo que se espera que o façam. Mandam os seus filhos para a escola, compram comida melhor para a sua família, levam os seus filhos ao médico e por aí em diante”, declara.

Leia aqui o estudo de Evelyn Forget: “The Town with no Poverty”.

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