“Se pudesse ter um desejo, queria ir à escola”: 3 crianças que trabalham contam as suas histórias
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, há cerca de 120 milhões de crianças entre os 5 e os 14 anos de idade envolvidas em situações de trabalho infantil no mundo.
As seguintes histórias foram contadas à Al Jazeera por 3 crianças para quem o trabalho é uma realidade do dia-a-dia.
Sonia, 10 anos
Sonia tem 10 anos e trabalha como criada e ama. Vive na casa dos seus patrões, na maior e mais populosa cidade do Paquistão. Não vai à escola, cuida das duas crianças da família de manhã à noite, mas não pode comer com elas e dorme no chão. Pelo seu trabalho, Sonia recebe 40,5€/mês. A sua história é a seguinte:
“Comecei a trabalhar há 7 meses, dois dias depois de nos termos mudado para Karachi. (…) É o meu primeiro trabalho. No princípio foi difícil porque eu não conhecia ninguém, mas depressa me habituei por causa das crianças. Tomo conta de duas crianças: Izan, que tem 1 ano, e Amber, que tem cerca de 4 – a mesma idade da minha irmã mais nova. É divertido brincar com eles. Mas não gosto do gato da casa. É mau; arranha e morde.
Faço todo o trabalho relativo a eles. Acordo às 7 da manhã e ajudo-os a prepararem-se para a escola. Depois vou com a baji [‘irmã’ em urdu, termo usado por Sonia para referir a sua patroa] para levar Amber à escola. Gosto muito de a levar à escola. É agradável ir lá. Há muitas crianças. Faz-me ficar feliz. Depois de a deixarmos na escola, voltamos para casa. É aí que começam as minhas tarefas domésticas.
Primeiro limpo o pó com um pano seco. Depois, limpo tudo com um húmido. A seguir, varro e lavo o chão. Por esta altura, já costuma ser hora de ir buscar Amber à escola.
Depois lanchamos todos. Dou de comer a Amber com as minhas próprias mãos – ela só come das minhas mãos. Eu como, noutra divisão, a comida que tiver sido preparada nesse dia. A baji dá-me o que devo comer. Nunca peço mais, se tiver fome. Não sei como pedir mais. Mas a comida aqui é melhor do que a da nossa casa. O meu dia termina por volta da meia-noite, quando Amber vai dormir.
Sou responsável por tudo o que é relativo às crianças. Mudo as suas fraldas, faço-as adormecer, sou responsável por todo esse trabalho. Amber dorme no quarto dos pais e eu noutro, no tapete. Não há nenhuma cama para mim.
Tenho um dia de folga a cada duas semanas, domingo sim domingo não. A minha mãe vem buscar-me. É quando a nossa família se reúne. A minha mãe também trabalha como criada e o meu pai é segurança num banco.
Tenho saudades dos meus pais quando estou em casa da baji. Não lhes posso dizer, mas falo com eles quando ligam para o telefone da baji. Somos 6 irmãos. Cinco de nós estão cá, em Karachi, mas a minha irmã mais velha, Safia, está em Punjah. Já se casou; é de quem tenho mais saudades.
Também tenho saudades da minha outra irmã mais velha, Ruqaiyya. É dois ou três anos mais velha do que eu e trabalha noutra casa. Ganho 4500 rupias (40,5€) por mês, mas ela recebe cerca de 8500 (76,5€). Ela só trabalha como criada e não tem de tomar conta de crianças.
Quero ser médica, quando crescer. Mas para se ser médico é preciso ir-se à escola. Nunca fui à escola, na minha vida. Se me fosse concedido um desejo, queria ir à escola.
À semelhança de Sonia, esta criança também trabalha como criada | Foto: The Nation
Samar, 11 anos
Samar tem 11 anos e começou a trabalhar há dois, para ajudar a sua família. Aos fins-de-semana e depois da escola, vende pastilhas elásticas num parque na capital do Sudão. Consegue cerca de 2€ por dia e gasta um quarto do que recebe no transporte para chegar ao parque. Quando for grande, quer ser advogada. Mas antes disso precisa de conseguir dinheiro suficiente para comprar os livros e o uniforme que lhe permitirão voltar à escola.
“Comecei a vender pastilhas elásticas há dois anos, quando nos mudámos para cá. Consigo cerca de 15 libras sudanesas (2€) por dia.
Durante a semana, trabalho depois da escola, a partir das duas da tarde. Costumo ir a casa, mudar de roupa, deixar as minhas coisas e depois ir trabalhar. Trabalho 3 horas por dia, durante a semana.
O parque onde trabalho é muito longe da minha casa. Apanho dois mini autocarros diferentes de forma a chegar lá e gasto um quarto dos meus ganhos diários em transportes públicos.
Durante os fins-de-semana, começo a trabalhar às 08:00 e acabo às 18:00.
Esta semana é quando as escolas sudanesas abrem depois das férias. Mas ainda não pude voltar já que não tenho dinheiro suficiente para pagar o uniforme, os livros e o material escolar.
Fico muito triste por não poder regressar porque eu adoro ir à escola. Vou conseguir o dinheiro e vou regressar à escola, mesmo que demore mais uma semana.
A minha mãe vende gelados e o meu pai trabalha numa fábrica. Tenho cinco irmãos mais novos.
Quando vou trabalhar no parque, prefiro usar uma abaya e um lenço pretos para evitar ser assediada por rapazes mais velhos. Às vezes há rapazes mais velhos que fingem que querem comparar pastilhas e que, em vez disso, me começam a tocar de maneira imprópria. Evito sempre vender a rapazes, quando estes estão sozinhos ou em grupos.
Não tenho escolha; tenho de continuar a trabalhar, mas não vou parar com os meus estudos. Encontro, muitas vezes, pessoas generosas que pagam o dobro quando se apercebem de que ainda estou na escola e que quero continuar a estudar. Tenho de ajudar a minha família; precisamos do dinheiro. Quero ajudar a minha mãe e o meu pai.
Tenho saudades da vida na nossa aldeia, antes de nos termos mudado para a capital. Não tínhamos muito, mas eu costumava brincar com os meus amigos e primos. Agora, não tenho nenhuns amigos aqui e não tenho tempo para brincar.
Mesmo assim continuarei a trabalhar e a estudar. Quando crescer, quero ser advogada. [Os advogados] recebem um bom salário, resolvem os problemas das pessoas e são poderosos. Um dia, essa serei eu.
Como Walid, este rapaz sírio também engraxa sapatos nas ruas de Beirute | Foto: Stephan Rebernik
Walid, 15 anos
Walid começou a trabalhar há dois anos como engraxador nas ruas de Beirute, a capital do Líbano, depois de ter deixado a sua aldeia e a sua família para trás na Síria.
Segundo a UNICEF, há pelo menos 1500 crianças com menos de 16 anos a trabalhar nas ruas de Beirute. O número real será, no entanto, muito mais elevado.
Walid esqueceu-se de como se lê e escreve, mas espera ser capaz de, um dia, voltar à escola.
“Deixei a minha aldeia perto de Sweida, na Síria, há 2 anos, depois de a situação ter piorado e de o meu pai ter deixado de conseguir trabalhar. Vim com o meu irmão mais velho para Beirute e comecei à procura de emprego, de forma a enviar dinheiro para a minha família lá em casa; os meus pais e os meus irmãos mais novos, que têm 10 e 11 anos.
Estava a ser difícil encontrar trabalho, por isso um rapaz mais velho ensinou-me a engraxar sapatos. Uma semana depois, comprei o meu próprio equipamento e comecei a trabalhar.
Antes de deixar a Síria estava na escola. Não era o mais esperto da turma, mas gostava muito de ir e gostava mesmo de estudar ciência. Como tinha muitos amigos na escola, era divertido. Estava a aprender a ler e a escrever, mas agora já me esqueci de tudo – os professores não se esforçavam muito para nos ensinar e agora já não consigo ler nem escrever. Se preciso de ajuda com alguma coisa, peço a alguém que mo leia.
Uma das coisas que eu queria mesmo era voltar à escola e aprender a fazer todas estas coisas, mas agora não é a altura. Um dia – veremos.
A minha vida aqui gira em torno do trabalho: acordo por volta das 8 da manhã e começo a trabalhar, costumo acabar por volta das 8 da noite, depende de quanto trabalho consigo. Nalguns dias, ganho 30 000 libras libanesas (19€), noutros 40 000 (25€). Noutros dias, é menos. Moro em Bir Hassan [sul de Beirute] com o meu irmão mais velho e o meu primo e a nossa renda é de 140€. Enviamos o resto do dinheiro para os nossos pais.
Tento evitar a polícia porque não tenho autorização para trabalhar cá, especialmente com a minha idade. Já fui preso três vezes, mas normalmente só tenho de pagar uma multa e eles deixam-me ir. Mas, às vezes, eles tiram-me o meu material para engraxar, o que faz com que tenha de comprar um novo.
(…) Costumo falar com a minha família uma ou duas vezes por semana no telemóvel do meu irmão – tenho muitas saudades deles. Quando sinto falta deles, vejo as suas fotografias no telemóvel.
Uma das coisas de que sinto falta é da comida da minha mãe; como cá nenhum de nós sabe cozinhar, comemos sanduíches a toda a hora. Tenho saudades da comida preparada em casa. Um dia espero voltar à Síria e trabalhar com as minhas mãos. Tenho jeito para trabalhar com as mãos.
Não quero, de modo nenhum, continuar a engraxar sapatos quando for mais velho. Estar no Líbano pode ser muito difícil e as pessoas insultam-me na rua por ser sírio; dizem-me para me ir embora e voltar para a Síria. Mas há pessoas que também são muito gentis.
Agora é impossível, para mim, voltar, por causa das novas restrições em matéria de vistos no país. Antes do início do ano, eu podia ir e vir, mas agora não. Até tive de pagar 190€ ao patrão do meu irmão para me apadrinhar de forma a poder ficar no país.”