E se pudesse ser preso por comer chocolate feito com trabalho escravo infantil?
Depois de ter feito uma investigação sobre a indústria do cacau para o seu programa, o jornalista holandês Teun van de Keuken descobriu, para sua grande consternação, que a maioria dos chocolates nas prateleiras dos supermercados era fruto do trabalho de escravos. Pior ainda: do trabalho de crianças escravas.
Esta descoberta levou-o a contactar e confrontar alguns dos maiores fabricantes de chocolate do mundo, que o ignoraram. Teun, ou Tony, estava decidido a chamar a atenção dos consumidores e a forçar a indústria do cacau e do chocolate a tomar medidas contra este problema, mas como? O que decidiu fazer a seguir foi inesperado.
Em 2003, depois de comer algumas barras de chocolate, Tony entregou-se às autoridades, dizendo que o chocolate que comprara tinha sido fabricado de forma ilícita e que ele era, desta forma, cúmplice do crime de escravatura infantil a decorrer nas plantações de cacau da Costa do Marfim.
O jornalista tinha o apoio da lei holandesa para o seu caso: “Quem receber bens (…) sabendo, na altura em que os recebe ou quando estes lhes são disponibilizados, (…) que estão em causa produtos obtidos de forma ilegal é culpado de receber intencionalmente (…) produtos obtidos ilegalmente e será punido com uma pena de até quatro anos na prisão ou com uma multa da Categoria Cinco”.
No entanto, o advogado de acusação decidiu que Tony não estava diretamente envolvido na indústria do cacau e que este não era um caso para os tribunais.
O holandês não se rendeu. Em 2005, recorreu da decisão e viajou à procura de testemunhas – vítimas do consumo de chocolate. Encontrou quatro rapazes que tinham trabalhado como escravos nas plantações de cacau da Costa do Marfim e que concordaram depor contra ele.
“Lucramos [com o trabalho] destas pessoas e elas não recebem quase nada em troca. Como consumidores, também somos responsáveis por estas atrocidades”, disse, na altura.
“Se eu for declarado culpado deste crime, qualquer consumidor de chocolate poderá ser processado depois de mim.”
Desta vez, o tribunal de recurso reconheceu a existência de exploração nas plantações, mas não condenou Tony.
Estas experiências levaram Tony a uma nova decisão: criou, nesse ano, uma marca de chocolates de comércio justo, feitos com cacau proveniente do Gana e da Costa do Marfim, produzido sem trabalho escravo. Foi assim que nasceu a Tony’s Chocolonely, cujas barras de chocolate são divididas desigualmente para ilustrar a desigualdade da indústria.
Vídeo: A história da Tony’s Chocolonely com testemunhos de crianças que trabalharam como escravas na produção de cacau.
“Primeiro sensibilizamos para o problema da desigualdade e da escravatura na indústria do chocolate. Em segundo lugar, damos o exemplo e mostramos que é possível fazer chocolate de outra forma”, explica Maudi Admiraal, da Tony’s Chocolonely. “E por último, mas não menos importante, queremos inspirar outras empresas de chocolate (como a Nestlé e a Hershey’s) a agir e procuramos ativamente parceiros para seguirem o nosso modelo.”
Hoje em dia, mais de uma década após a luta de Tony nos tribunais, a sombra da escravatura infantil nas plantações de cacau está longe de ter desaparecido. O Departamento de Estado dos EUA estima que existam 1,2 milhões de crianças a trabalhar na Costa do Marfim, um país responsável por 40% da produção mundial de cacau. Segundo o departamento, mais de 100 000 crianças passam pelas “piores formas de trabalho infantil” e cerca de 10 000 são vítimas de tráfico humano ou de escravatura.
1ª foto: Daniel Rosenthal
Vídeo: Documentário “Tony e a Fábrica de Chocolate”. Ative as legendas em inglês.
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— Pigeon Fancier (@isabelzawtun) February 13, 2021