Juízes responsáveis por acórdão sobre violência doméstica são alvo de processo disciplinar
Os juízes do Tribunal da Relação do Porto Joaquim Neto de Moura e Maria Luísa Arantes vão ser alvo de processo disciplinar devido ao acórdão que desvalorizou a violência doméstica.
“Quanto ao senhor juiz desembargador Neto de Moura por violação dos deveres funcionais de correção e de prossecução do interesse público, este na vertente de atuar no sentido de criar no público a confiança em que a Justiça repousa (12 votos a favor e 5 contra)”, disse o Conselho Superior da Magistratura (CMS) em comunicado.
“Quanto à senhora juíza desembargadora Luísa Senra Arantes, por violação do dever de zelo (9 votos a favor e 8 contra)”, acrescenta.
O instrutor do processo disciplinar irá produzir uma acusação contra os dois magistrados, da qual se poderão defender. No final, fará um relatório, propondo uma medida que pode ir desde o arquivamento até uma das várias sanções possíveis: advertência (registada ou não), multa, suspensão de funções, transferência, aposentação compulsiva ou demissão. Caso não concordem com a punição aplicada, Neto de Moura e Luísa Arantes podem recorrer dela para os tribunais.
O acórdão vergonhoso
A decisão diz respeito a um caso de violência doméstica que envolve três pessoas. Em junho de 2015, depois de sequestrar a vítima, o ex-namorado chamou o ex-marido para a confrontarem os dois, acabando por a agredir com uma moca com pregos.
No acórdão da Relação do Porto, do dia 11 de outubro, o juiz relator, Neto de Moura, minimizou o crime de violência doméstica pelo facto da vítima ter sido infiel.
Para tal, o juiz invocou a Bíblia, o Código Penal de 1886 e mencionou civilizações que punem o adultério com pena de morte, de forma a desvalorizar a violência cometida contra esta mulher por parte do marido e do amante, ambos condenados a pena suspensa na primeira instância.
“O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, escreveu Neto de Moura na decisão do tribunal superior (que foi assinada pela desembargadora Maria Luísa Abrantes sem a ler até ao fim).
“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”.
Depois de conhecido o acórdão, foi criada uma petição “online” que foi assinada por mais de 28 mil pessoas, através da qual se pedia uma tomada de posição do Conselho Superior de Magistratura e do provedor de Justiça e que apelava a uma “reflexão urgente e séria” sobre a necessidade de se alterar o sistema de e/ou avaliação dos juízes, “para que casos como este sejam evitados no futuro“.
No dia 27 de outubro, centenas de pessoas, que classificaram o acórdão como machista e desculpabilizador do crime de violência doméstica, protestaram no centro de Lisboa.
O acórdão foi criticado pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e pela a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta.
A Amnistia Internacional Portugal disse estar “preocupada” não só pela atuação dos juízes desembargadores ao “arrepio” dos preceitos legais e constitucionais, mas pelo espelhar de uma cultura e justiça promotora de “misoginia”, sem ter em conta os direitos das mulheres e à compreensão do uso de violência para vingar a honra e a dignidade. “A Amnistia Internacional Portugal defende a ausência de considerações de caráter religioso como fundamentação jurídica em nome do respeito do princípio da laicidade e em nome da igualdade e do respeito por todas as religiões”, realçou. “O Código Penal Português de 1886, citado no acórdão do tribunal da Relação do Porto, foi revogado pelo Código Penal de 1982, revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de março. Assim, o Código Penal de 1886, citado no acórdão, não é fonte de direito português, não podendo ser utilizado pelos tribunais. A sua utilização revela a ineficácia da justiça portuguesa”.
Outras decisões polémicas
Em 2013, Neto de Moura considerou que uma agressão de um homem a uma mulher com o filho recém-nascido ao colo não tinha “gravidade bastante”. Uma mulher acusou o marido de violência doméstica, depois de este lhe ter dado um murro no nariz e de a ter mordido numa mão quando tinha ao colo o filho. Neto de Moura, na altura no Tribunal da Relação de Lisboa, não considerou estes atos como violência doméstica. “É manifesto que essa conduta do arguido não tem a gravidade bastante para se poder afirmar que foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente [a vítima], mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho (então com nove dias de vida) ao colo“, lê-se no acórdão. O juiz considerou que o murro teve pouca força, uma vez que o nariz ficou apenas “ligeiramente negro de lado” e que a mão da vítima não apresentava “lesões aparentes.” O homem foi absolvido do crime de violência doméstica e foi condenado por ofensas à integridade física e ao pagamento de uma multa de 350 euros.
Em 2016, o juiz anulou uma sentença de dois anos e quatro meses de prisão por pena suspensa por violência doméstica agravada. Segundo Neto Moura a vítima cometeu adultério e era “uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral”. De acordo com o processo n.º 388/14.6 GAVLC.P1 da Relação do Porto, a pena tinha sido decidida pela Instância Local de Vale de Cambra a 13 de Outubro de 2015. Além da pena suspensa, o arguido tinha de pagar uma indemnização de 2500€.
O arguido interpôs recurso e a sua pena foi anulada a 15 de junho de 2016. Como referiu Neto de Moura, o tribunal de Vale de Cambra não ficou convencido com as declarações do agressor e “conferiu crédito irrestrito a quem não se mostra dele merecedor [a vítima]”. “Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira, para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus-tratos. Que pensar da mulher que troca mensagens com o amante e lhe diz que quer ir jantar só com ele ‘para no fim me dares a sobremesa’? Isto, está bem de ver, enquanto o companheiro ficaria a cuidar dos filhos menores do casal…”
“Revelou-se a denunciante merecedora do crédito total e incondicional que o tribunal lhe atribuiu? A resposta só pode ser um rotundo não. Em boa verdade, a denunciante não é, propriamente, aquela pessoa em que se possa acreditar sem quaisquer reservas“, defendeu Neto de Moura. “Na contestação que apresentou, o arguido alegou que a denunciante, sua ex-companheira, ainda quando viviam como marido e mulher, mantinha uma relação extraconjugal com um indivíduo. Os documentos que juntou com a sua contestação atestam isso mesmo, que a denunciante andava a cometer adultério e até nem seria a primeira vez que o fazia. Ora, o tribunal ignorou completamente essa alegação.”