MEL: Em defesa do ensino doméstico em Portugal

MEL: Em defesa do ensino doméstico em Portugal

14 de Agosto, 2018 0

Crianças sentadas num jardim

A MEL, Associação Movimento Educação Livre, promove modalidades alternativas de educação, que respeitam os direitos, as opções e o desenvolvimento integral das crianças e das famílias.

O UniPlanet falou com Inês Peceguina, vice-presidente da Associação MEL e investigadora na área da psicologia, da educação e do desenvolvimento, que nos apresentou o conceito do ensino doméstico.

UniPlanet (UP): Como nasceu o Movimento Educação Livre – MEL?


O Movimento nasceu em 2011. Foi o resultado de um exercício cívico, em modo parental, ou familiar. Um coletivo de educadores, encarregados de educação, inquietos naquela fronteira entre a insatisfação e a curiosidade e uma necessidade, mais de que um desejo, de agir, de transformar, de experimentar. Este coletivo de pessoas que então não se conheciam, foi capaz de gerar assim essa ação coletiva que se concretizou na criação da associação, uma associação para a defesa da liberdade em educação. Para informar, esclarecer e capacitar as famílias que tivessem, tenham, também esse desejo.

Para além da família, e pela sua natureza abrangente e transversal, a ação do Movimento faz-se em articulação com outras associações, parceiros, instituições envolvendo muitas pessoas com muitas e diversificadas competências e vivências. Porém, é importante também “contar”, que é uma associação que depende em absoluto do trabalho voluntário. Esta sua condição, por sua vez, leva a que sejam, ainda, insuficientemente explorados alguns territórios importantes. São mais as barrigas do que os olhos, por assim dizer! E precisamos sempre de mais olhos, olhos atentos, que ficam, que se demoram e que assumem de coração esta tarefa, enquanto veículos de um conjunto de ferramentas que não nos pertencem, mas que pelo seu poder de mudança, de reinvenção de tantos lugares da pessoa, devem ser usadas com cuidado, com prudência e delicadeza e, assim o desejamos, com muito compromisso e espírito de missão.

Pai com crianças na natureza

UP: Pode explicar-nos em que consiste o ensino doméstico, o ensino individual, o ensino para a itinerância/ à distância e o ensino articulado?


Um a um… O ensino doméstico (ED) é aquele que é da responsabilidade de um co-habitante da criança/jovem, tendo a sua base na casa. Este co-habitante, geralmente um familiar próximo, deverá ter um determinado nível de habilitações literárias. São estas as duas condições atualmente previstas pela lei para esta opção. Na prática, contudo, não são critérios suficientes. É preciso, para além disso, compreender o que significa esta opção em termos de família, de projeto familiar.

É geralmente uma escolha que implica um grande planeamento e reflexão por parte dos encarregados de educação. Sobretudo, porque no nosso país, sendo uma situação muito rara, há também um grande desconhecimento, quer por parte da própria escola, quer por parte da sociedade em geral que confrontada com uma possibilidade de crescimento e desenvolvimento diferentes daquela que conhecem, tende a trazer uma enorme desconfiança e medo. Muitas dúvidas, e também muitas ideias sem nenhum fundamento e muitas vezes, altamente destrutivas e punitivas.

O Ensino Individual – difere na medida em que o responsável pelo projeto educativo é um professor, devidamente habilitado. Prevê igualmente a ausência de participação nas aulas.
O ensino para a itinerância (EI)/à distância, pressupõe que seja comprovada essa condição de vida nómada.

O ensino articulado existe para a música, a dança e o canto gregoriano. É uma possibilidade para fazer um percurso escolar que articula a formação artística ou desportiva, nas áreas referidas, e a escola. É nosso conhecimento que outras modalidades desportivas têm interesse nesta articulação mas que, para já, não se verifica essa abertura por parte de quem regula. O exercício de qualquer modalidade desportiva ou artística, em modo “alta competição” naturalmente, implica treino regular e sistemático, pelo que à partida, se forem outras as artes ou os desportos, será muito complicado que Portugal possa ser uma boa base de formação de excelência, se não for na arte da música, dança, teatro ou canto gregoriano.

Menina a ler

UP: A quem se destina o ensino doméstico?


Penso que terei respondido na questão acima. A famílias para quem este projeto faz sentido e que cumpram os requisitos legais – coabitação e habilitações. O ED manifesta-se numa forma de viver em que a casa é a base do projeto educativo. Isto pressupõe um tempo de estar em conjunto que é muito diferente do habitual. Por essa razão, prevê da parte do educador uma enorme disponibilidade para a relação, as interações, os conflitos. De um modo geral, parte de preocupações ou ideias que vão para além da realização académica. Assim, de forma muito breve, destina-se a quem encontra nesta forma um lugar melhor para crescer, para aprender e para cuidar desse lugar precioso em vias de extinção, que é a família.

UP: O que diz a lei portuguesa sobre o ensino doméstico?


Também já referi este aspeto. Diz que a criança tem de coabitar com o encarregado de educação e que este deve ter um determinado nível de habilitações. Sabemos que a lei está prestes a sofrer algumas alterações. Mas para já, é assim. Está também previsto que as crianças realizem provas de equivalência à frequência no final de cada ciclo de ensino, ou seja, no 4º, 6º, 9º e 12º ano, ou exames nacionais, se os houver nos respetivos anos.

Muito recentemente, saiu nova legislação que indica que os alunos em ED e EI também devem realizar as provas de aferição nos 2º, 5º e 8º anos. No entanto, não é claro o propósito desta avaliação que não tendo valor classificativo, poderá interferir com os projetos educativos das famílias que optaram pelo ED, por exemplo, por desvalorizarem esta forma de aprender e ensinar, centrada em testes e em tempos específicos de aquisição de determinados conteúdos.

UP: Como se processa a matrícula de um aluno em regime de ensino doméstico? Em que altura decorre esta matrícula?


Exatamente da mesma forma. A criança deve ser matriculada nos tempos próprios e normais. Deve assinalar essa opção e entregar a documentação necessária.

Crianças a brincar

UP: Como é o ano letivo de um aluno em regime de ensino doméstico?


Para esta pergunta não tenho resposta. Depende de cada família, da sua natureza, da sua ideologia, do número de crianças, da sua idade, da localização geográfica, etc. Posso no entanto contar brevemente como foi o nosso ano, no ano anterior. Segunda feira foi o dia da música. Em pequeno grupo, crianças entre os 4 e os 7, exploraram o corpo enquanto instrumento, as canções e cantigas das avós e bisavós. As rimas. O piano, a harmónica, etc.

A terça e a quarta foram dias de brincar em conjunto, em pequeno grupo também, uma semana em cada casa de uma das famílias. Nestes dias, vinham mais dois adultos, que trouxeram a sua singularidade e forma de estar que é diferente da da família. Trouxeram também algumas atividades. Trouxeram um “concelho de fogo”, que é uma assembleia. Um exercício de democracia. De paciência, de escuta ativa. Trouxeram os burros, a casa no bosque, e o seu olhar rico em observações que nos foram devolvendo e sobre as quais conversamos com estas crianças. A quarta foi também dia de acrobacia aérea. E a terça, de ballet.

A quinta foi o dia do Museu, o Museu de história e ciência natural da universidade de Lisboa foi o escolhido do ano que passou. Foi também dia de Pavilhão do Conhecimento. As quintas que se alternavam. Sexta foi dia livre. Dia para estar sossegado. Para ficar em silêncio. Para desenvolver, fosse esse o desejo, projetos mais individuais. Com o suporte do encarregado de educação. Esta é uma descrição muito geral.

Pelo meio ficam inúmeras experiências por contar e inúmeros encontros e visitas e projetos e acontecimentos. Jantares de Natal coletivos. Noites de bruxas. Livros que se leram repetidamente. Que passaram do colo do adulto para o da criança. Outras famílias, porém, em função das dimensões que assinalei no início, terão tido um ano completamente diferente. Este é um dos aspetos, na minha opinião, mais interessantes do ED. A sua natureza “DIY”, a sua possibilidade para se adaptar às circunstâncias de cada família.

UP: O que são comunidades de aprendizagem?


São escolas. A escola, na sua essência, seria uma comunidade de aprendizagem. Só que a escola foi-se fechando. Gradeando-se. Crescendo em sistemas de vigilância, de segurança, de higienização. A escola foi-se fechando à aprendizagem e ao conhecimento. Cresceu em disciplinas, em tempos curriculares, em metas, em avaliações. E em cansaço. Em desânimo. Em falta de significado.

As comunidades de aprendizagem seriam as escolas. Entretanto, fora da escola, parece estar a acontecer este fenómeno. Comunidades que se agregam, famílias, professores, autarquias e que redefinem espaços educativos, redefinem papéis, preocupações, objetivos. Estas comunidades não se organizam de acordo com as regras da escola de massas. Por vezes, erradamente, na sua transformação, neste exercício de não serem ainda uma escola alternativa, utilizam o ED como possibilidade de fazer avançar um projeto. São talvez um híbrido entre ED e escola. O futuro?

UP: Onde podemos encontrar mais informação sobre a associação MEL?


No site encontram alguma informação, embora o site esteja em processo de mudança também. Estamos ativos no Facebook, no Instangram, nos nossos e-mails.

Cláudia Sousa fala no TEDxLisboaED de 2014 sobre o ensino doméstico

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