Produção de alimentos “gravemente ameaçada” por perda de biodiversidade, avisa ONU
A biodiversidade que sustenta os nossos sistemas alimentares está em declínio no mundo, o que representa uma “grave ameaça” para o futuro da nossa alimentação e do ambiente, concluiu o primeiro estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre as plantas, animais e microrganismos que ajudam a produzir os nossos alimentos.
Nas últimas duas décadas, cerca de 20% da superfície terrestre coberta por vegetação tornou-se menos produtiva, revelou o estudo, que também relatou uma perda “debilitante” de biodiversidade do solo e de ecossistemas vitais, como florestas, prados, recifes de coral, mangais e pradarias de ervas-marinhas.
Muitas espécies que estão indiretamente envolvidas na produção alimentar, ou seja, aquelas que não chegam à mesa do consumidor, mas fornecem serviços essenciais para a alimentação e agricultura, estão a sofrer declínios. É este o caso das aves que comem as pragas das culturas e das árvores de mangue que ajudam a purificar o ar.
As espécies polinizadoras – fundamentais para três quartos das plantações mundiais – também estão ameaçadas. 17% dos polinizadores vertebrados, como as aves e os morcegos, estão em risco de extinção e cada dia nos chegam mais dados inquietantes sobre o “colapso” das populações das abelhas e de outros insetos.
33% das unidades populacionais de peixe são sobre-exploradas e um terço das espécies de peixes de água doce está ameaçado, informa ainda o relatório, que reuniu informações de 91 países.
“Isto coloca o futuro da nossa comida e do ambiente sob grave ameaça”, defendeu o diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva. “A biodiversidade é fundamental para proteger a segurança alimentar global, sustentar dietas saudáveis e nutritivas, melhorar os modos de vida rurais e a resiliência das pessoas e das comunidades.”
Floresta destruída para ser convertida em plantações | Foto: Mighty Earth
Por trás desta perda de biodiversidade estão ameaças como a destruição e degradação de habitats, a sobre-exploração dos recursos, a poluição, a urbanização, as espécies invasoras, entre outras.
O atual modelo agrícola tem uma enorme fatia de culpa, devido às alterações do uso das terras e às suas práticas insustentáveis, como a sobre-exploração do solo e a dependência de pesticidas, herbicidas e outros agroquímicos.
“Os alicerces dos nossos sistemas alimentares estão a ser minados, frequentemente – pelo menos em parte – devido ao impacto das práticas de gestão e das alterações da utilização dos solos associadas à alimentação e à agricultura”, escreveu o diretor-geral da FAO no prefácio do relatório.
“Em todo o mundo, a biblioteca da vida que evoluiu durante milhares de milhões de anos – a nossa biodiversidade – está a ser destruída, envenenada, poluída, invadida, fragmentada, pilhada, esgotada e queimada a um ritmo nunca visto na história humana”, disse o presidente da República da Irlanda, Michael Higgins, numa conferência sobre a biodiversidade.
Falta de diversidade genética nos nossos alimentos
A FAO também vê com preocupação a falta de diversidade genética nas espécies de cultivo e de gado. Das cerca de 6 mil espécies de plantas cultivadas para alimentação, menos de 200 contribuem substancialmente para a produção global de alimentos.
Um dado mais desconcertante: apenas nove respondem por dois terços da produção agrícola total. São elas a cana de açúcar, milho, arroz, trigo, batatas, soja, palmeiras-de-óleo, beterraba sacarina e mandioca.
Monoculturas de trigo e soja
Muitas das restantes 6000 espécies vegetais cultivadas estão em declínio.
“Menos biodiversidade significa que as plantas e animais são mais vulneráveis a pragas e doenças. A crescente perda de biodiversidade para alimentação e agricultura, agravada pelo facto de dependermos de cada vez menos espécies para nos alimentarmos, coloca a segurança alimentar e a nutrição em risco”, explicou José Graziano da Silva.
Os autores do estudo relatam como a dependência excessiva de um número limitado de espécies foi um fator determinante na fome causada pelo míldio da batata na Irlanda na década de 40 do séc. XIX, nas más colheitas de cereais nos EUA durante o séc. XX e nas perdas na produção de inhame em Samoa nos anos 90.
“Os supermercados estão cheios de comida, mas trata-se sobretudo de importações de outros países e não há muitas variedades”, avisou Julie Bélanger, coordenadora do relatório.
“É necessário e urgente mudar a forma como os alimentos são produzidos e garantir que a biodiversidade não é ignorada, mas antes tratada como um recurso insubstituível e uma parte essencial das estratégias de gestão”, disse a investigadora.
À semelhança de outros polinizadores, os beija-flores também têm sofrido declínios
Práticas amigas da biodiversidade em plano ascendente
Por outro lado, a FAO aponta para um interesse crescente em práticas e abordagens favoráveis à biodiversidade e para um aumento global dos esforços de conservação, como a criação de áreas protegidas. A agência considera, contudo, que o progresso feito é insuficiente.
A agricultura biológica, por exemplo, cobre atualmente 58 milhões de hectares no mundo, o que representa apenas 1% da superfície agrícola global.
Outras práticas favoráveis à biodiversidade incluem a gestão integrada das pragas, a agricultura de conservação, a gestão sustentável de florestas e do solo, o sistema agroflorestal, a abordagem ecossistémica para as pescarias e a restauração de ecossistemas.
“Os agricultores californianos, por exemplo, permitem [agora] que os seus arrozais sejam inundados no inverno, em vez de os queimarem”, diz a FAO. “Isto proporciona 111 mil hectares de zonas húmidas e espaço aberto para 230 espécies de aves, muitas delas em risco de extinção. Como resultado, muitas espécies começaram a aumentar em número. A quantidade de patos duplicou.”
Outro exemplo apontado no relatório é o dos agricultores no Gana, que estão a plantar mandioca nos limites dos seus campos. As flores desta planta produzem muito néctar, atraindo abelhas e outras espécies, o que beneficia as suas culturas.
A FAO pede mais esforços para ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade e o seu papel no sistema alimentar, lembrando que muitas espécies ainda não foram identificadas e descritas, especialmente no caso dos invertebrados e microrganismos. Mais de 99% das espécies de bactérias e protistas – e o seu impacto na alimentação e agricultura – permanecem desconhecidas.
O que os consumidores podem fazer
O público em geral também pode ter um papel na redução das pressões sobre a biodiversidade, optando por produtos cultivados de forma sustentável, frequentando mercados de agricultores, boicotando alimentos considerados insustentáveis ou participando em projetos de ciência cidadã, que ajudam a melhorar os conhecimentos sobre a biodiversidade.
“Uma coisa que sobressaiu muito claramente foi a importância do papel dos cidadãos-cientistas”, disse Julie Bélanger. “As pessoas envolvidas em trabalho voluntário para a monitorização da biodiversidade bem como em atividades de conservação estão a desempenhar um papel muito importante em diversos países.”