“Não Partilhes”: o projeto que combate o crime da partilha não consentida de imagens íntimas

“Não Partilhes”: o projeto que combate o crime da partilha não consentida de imagens íntimas

12 de Abril, 2025 0

A partilha não consentida de imagens íntimas é uma forma de violência cada vez mais presente na sociedade digital, com consequências profundas para as vítimas. Foi para dar resposta a esta realidade que nasceu a associação “Não Partilhes”, criada por Inês Marinho, após ter passado por esta experiência na primeira pessoa. O UniPlanet falou com a fundadora do projeto sobre o impacto da Violência Sexual Baseada em Imagens (VSBI), os apoios que prestam às vítimas, os desafios legais e sociais que ainda persistem e o papel essencial da educação e empatia no combate a este crime.

 

UniPlanet (UP): Como surgiu a ideia de criar a associação “Não Partilhes”? Foi uma resposta direta à tua experiência pessoal?

Sim, a criação da associação #NãoPartilhes surge em resposta direta à minha própria experiência como vítima de violência sexual baseada em imagem. Após ter sobrevivido a este crime, juntaram-me num grupo com outras raparigas que tinham passado por situações semelhantes à minha. Percebi, depois do que vivi, a ausência de respostas eficazes e empáticas para quem passa por este tipo de violência. Foi essa constatação que me levou a querer transformar a minha dor em ação, com apoio dos membros desse grupo de raparigas, que me ajudaram a impulsionar o movimento, criando um espaço de apoio e sensibilização.

 

UP: O que te motivou a transformar essa experiência tão dolorosa num projeto de apoio a outras vítimas? 

A principal motivação foi o sentimento de injustiça e a falta de empatia que existia com as vítimas. Entendi que infelizmente não era a única a passar por isto, éramos milhares… Se eu, com os meus recursos e rede de apoio, me senti assim, imaginei quantas pessoas se sentiriam ainda mais desamparadas. Quis então criar um movimento que fosse voz, suporte e transformação para todes.

 

 

UP: Que tipo de apoio prestam atualmente às sobreviventes de Violência Sexual Baseada em Imagens (VSBI)?

Oferecemos apoio emocional, orientação legal pré-queixa, encaminhamos para acompanhamento psicológico a preços acessíveis ou gratuitos e aconselhamento sobre segurança digital. Asseguramos que cada pessoa seja ouvida com respeito, empatia e sem julgamentos. A nossa abordagem é centrada nos sobreviventes e no crime em si, com foco na dignidade e autonomia da pessoa.

 

UP: A “Voz Amiga” é uma das iniciativas da associação. Podes explicar melhor como funciona e qual tem sido o seu impacto?  

A “Voz Amiga” é uma linha de apoio confidencial e não-julgadora, onde as pessoas podem partilhar as suas experiências, pedir ajuda ou simplesmente conversar com alguém que compreenda o que estão a viver. A maioria das pessoas que sobrevive a este crime, percorre um caminho de solidão e silêncio. Ser o único meio de contacto dessas pessoas, pode salvar-lhes a vida.

 

 

UP: O que é mais importante dizer a alguém que acabou de descobrir que imagens íntimas suas estão a ser partilhadas sem consentimento?

A primeira coisa a dizer é: “a culpa não é tua”. A responsabilidade recai exclusivamente sobre quem partilhou o conteúdo sem consentimento. A seguir, é fundamental reforçar que existe ajuda, que não está sozinhe e que há caminhos legais e de apoio que podem ser seguidos. Basicamente, tentar organizar a confusão que vai na cabeça da pessoa e orientá-la para procurar apoio.

 

UP: Que erros comuns as pessoas cometem, mesmo com boas intenções, ao tentar apoiar vítimas de VSBI?

Infelizmente, há uma tendência para minimizar o impacto “não foi assim tão grave” ou “a imagem nem é verdadeira”, culpabilizar “porque é que enviaste?” ou “já não sabes que não se pode confiar em ninguém?” ou tentar resolver tudo de forma imediata, sem tentar perceber realmente o que a pessoa precisa. O mais importante é ouvir, respeitar o tempo da pessoa, e perguntar: “como é que posso ajudar-te?”. Não pressionar a pessoa a agir e estar disponível para apoiar.

 

UP: Na tua opinião, o sistema judicial português está preparado para lidar com este tipo de crime? Que mudanças consideras urgentes?  

Infelizmente, o sistema judicial português ainda não está preparado. Falta formação específica para magistrados, forças de segurança e peritos da área. A própria lei relativa a estes crimes, não é autónoma (o que significa que não há um artigo específico onde se enquadre, pode-se enquadrar em vários), não é um crime sexual (o que não demonstra a verdadeira gravidade destes delitos) e não é crime público (o que faz com que estejamos sempre dependentes da vítima para iniciar um processo legal). É urgente reconhecer a VSBI como uma forma de violência sexual e de género, melhorar a celeridade dos processos, garantir proteção às vítimas e atualizar a legislação à realidade atual.

 

 

UP: Acreditas que a sociedade ainda tende a culpar a vítima nestes casos? Como se combate esse estigma? 

Sim, infelizmente, a culpabilização continua presente. Combater esse estigma passa por educação, campanhas de sensibilização e formação contínua para todos os setores, desde escolas a tribunais. É preciso mudar o foco do “puseste-te a jeito” para “porque violaste a intimidade de alguém?”

 

UP: A associação promove palestras em escolas. Qual tem sido a receção por parte dos jovens? Notas abertura para falar sobre este tema?  

Tenho notado uma grande abertura por parte dos jovens. Muitos sentem-se aliviados e entusiasmados por poder falar de temas que são conhecidos pela maioria. Há uma enorme sede de informação. O desafio está em criar espaços seguros e acessíveis onde se sintam confortáveis para aprender e questionar, livres de julgamentos.

 

UP: O que é mais importante ensinar aos jovens para prevenir a partilha não consentida de imagens íntimas? 

Mais do que dizer “não faças”, é importante ensinar sobre consentimento, empatia, responsabilidade digital e consequências legais. Educar para a autonomia corporal, o respeito pelas escolhas dos outros e o direito à privacidade são as ferramentas mais poderosas de prevenção. E explicar que muitas vezes fazemos coisas por “efeito manada”, só porque está toda a gente a fazer, e que todos temos a autonomia de não participar e ser cúmplices dessa violência.

 

UP: Quais são os sinais de alerta que podem indicar que alguém está a ser vítima deste tipo de violência? 

Alterações repentinas no comportamento, isolamento, ansiedade, medo em usar redes sociais ou estar a receber ameaças podem ser sinais.

 

UP: A VSBI afeta sobretudo mulheres jovens, mas mencionaste que os homens também são vítimas. Que barreiras específicas eles enfrentam?  

Homens também são vítimas da nossa sociedade machista e patriarcal. Eles enfrentam o estigma que lhes diz que não devem mostrar fragilidade ou pedir ajuda. Muitas vezes não são levados a sério ou são ridicularizados. Precisamos de reforçar que este crime pode afetar qualquer pessoa, independentemente do género, idade ou posição social, e que todas merecem apoio e justiça.

 

UP: Podes partilhar algumas dicas de segurança digital relacionadas com o envio e partilha de imagens íntimas?  

Evitar partilhar imagens identificáveis (sem rosto ou elementos reconhecíveis como tatuagens ou piercings), colocar uma marca de água com o nome da pessoa no conteúdo para quem vamos enviar a nude, ativar autenticação de dois fatores em todas as contas, não enviar conteúdo íntimo a desconhecidos, evitar armazenar este tipo de conteúdo em serviços cloud ou em conversas e conhecer os nossos direitos legais.

 


UP: Existe alguma forma 100% segura de partilhar nudes? O que aconselhas a quem o faz ou pensa fazer?  

Infelizmente, não existe forma 100% segura visto que todos nos inserimos numa sociedade machista, que acha que a sexualidade de alguém (principalmente das mulheres) pode ser usada como arma de arremesso contra a pessoa. O risco nunca é zero. Mas reforço: a única pessoa responsável por expor a intimidade de alguém, é quem partilha sem consentimento.

 

UP: Como é que a comunidade em geral pode ajudar a combater este crime e apoiar melhor as vítimas?  

A comunidade pode ajudar ao não partilhar conteúdos íntimos não consentidos, ao denunciar esse tipo de material nas plataformas, e ao ouvir e apoiar vítimas sem julgamento. Promovendo conversas sobre este tema e igualdade de género nos círculos próximos, isto pode também ajudar à compreensão do crime e a sensibilizar outras pessoas sobre a gravidade da VSBI.

 

UP: Consideras que as redes sociais e plataformas digitais têm responsabilidade nesta problemática? O que deveria mudar?  

Sim, têm uma enorme responsabilidade, na verdade é mais uma falta dela. Devem melhorar os sistemas de denúncia e levá-las a sério! Ser mais ágeis na remoção de conteúdos, colaborar com as autoridades e garantir a proteção dos utilizadores, sobretudo os mais vulneráveis (crianças e jovens). A transparência nos algoritmos também é essencial. Há aplicações e motores de pesquisa, hoje em dia, que inibem formas de colocar mulheres nuas através de AI gratuitamente ou que permitem que existam grupos com dezenas de milhares de homens a violar a intimidade de mulheres e meninas diariamente.

 


UP: A vossa associação tem recebido mais pedidos de ajuda nos últimos anos? Que tendências tens observado?  

O que mostram os dados de outras associações é que as denúncias estão a aumentar, o que a meu ver pode indicar tanto um aumento de casos como uma maior consciencialização. Por parte da associação #NãoPartilhes tivemos uma grande enchente de pedidos de ajuda no início, pois calculo que viemos falar de um tema específico que ninguém tinha falado. Mas tenho notado também que muitas pessoas procuram apoio passado algum tempo do crime, o que mostra que o impacto psicológico é prolongado.

 

UP: Que recursos ou apoios gostarias de ver criados em Portugal para lidar com este tipo de violência de forma mais eficaz?  

Gostaria de ver a criação de centros especializados de apoio a vítimas de VSBI, formação obrigatória para magistrados e forças de segurança, investimento em literacia digital e educação sexual nas escolas, alterações e melhorias na lei e uma rede de resposta nacional coordenada entre entidades públicas e organizações da sociedade civil.

 

UP: Para quem quer ajudar, como pode colaborar com a associação “Não Partilhes”?  

Podem ajudar de várias formas: partilhando a nossa mensagem nas redes sociais, organizando eventos de sensibilização ou promovendo estas conversas com as pessoas próximas de nós. Toda a ajuda é bem-vinda!

 

UP: Por fim, que mensagem gostarias de deixar a quem está a passar por uma situação semelhante à que tu viveste? 

Gostaria de dizer que não estás sozinhe. O que aconteceu contigo não define quem tu és nem o que tu vales. Há pessoas e entidades que se importam contigo e que estão aqui para te apoiar. A tua dor é válida e o processo de cura é um percurso. Permite sentires-te triste ou feliz. Mereces ser livre novamente!

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