RALVT: proteger a fauna marinha e monitorizar os arrojamentos em Lisboa e Vale do Tejo

RALVT: proteger a fauna marinha e monitorizar os arrojamentos em Lisboa e Vale do Tejo

17 de Janeiro, 2025 0

A Rede de Arrojamentos de Lisboa e Vale do Tejo (RALVT) desempenha um papel crucial na monitorização e resposta aos arrojamentos de mamíferos e répteis marinhos na região entre a Lourinhã e Setúbal. Criada em 2021, a RALVT alia ciência, conservação e sensibilização, trabalhando em parceria com diversas entidades para proteger a fauna marinha e aumentar a literacia do oceano. Nesta entrevista, exploramos a missão, os desafios e as iniciativas desta rede essencial para a preservação dos nossos ecossistemas marinhos.

 

UniPlanet (UP): Podem apresentar a RALVT e explicar qual é a sua principal missão?

A Rede de Arrojamentos de Lisboa e Vale do Tejo (RALVT) foi criada em 2021 com o objetivo de responder a arrojamentos de mamíferos e répteis marinhos que ocorrem na região entre os municípios da Lourinhã e de Setúbal. Um arrojamento é qualquer situação em que um animal marinho, vivo ou morto, encalha na costa e não consegue retornar à água sem auxílio.

A nossa missão é monitorizar e intervir em casos de arrojamentos vivos ou mortos, proporcionando uma resposta eficaz e informada. Trabalhamos em parceria com o MARE-ISPA, o ICNF e o Fundo Ambiental, e a nossa atuação permite a recolha de dados científicos, que ajudam a aumentar o conhecimento sobre estas espécies e a implementar medidas de conservação eficazes. Além disso, desenvolvemos atividades educativas para promover a literacia do oceano e sensibilizar a população sobre a importância da preservação dos habitats e da conservação das espécies marinhas.

 

Atividade de Educação Ambiental na Escola EB Paula Vicente

 

UP: Como é que a RALVT se insere na Rede Nacional de Arrojamentos?

A RALVT é uma das unidades regionais da Rede Nacional de Arrojamentos (RNA), e o seu papel é coordenado com as demais redes e autoridades a nível nacional, como o ICNF e a Polícia Marítima. Ao integrar a RNA, a RALVT segue os protocolos estabelecidos para a gestão de arrojamentos e colabora com as outras redes regionais na recolha e análise de dados. Além disso, a RALVT também contribui para o desenvolvimento de boas práticas e metodologias, além de promover ações de sensibilização e educação ambiental em parceria com as comunidades locais.

UP: Quais são as principais espécies de mamíferos e répteis marinhos que monitorizam na região entre a Lourinhã e Setúbal?

Em Portugal Continental existem 28 espécies de mamíferos marinhos identificadas, incluindo golfinhos, bôtos e baleias, e 5 espécies de tartarugas-marinhas. A nossa área de atuação abrange a área de ocorrência de várias espécies sendo que as espécies de mamíferos mais comuns de arrojarem na nossa zona são o golfinho-comum (Delphinus delphis), o roaz-corvineiro (Tursiops truncatus), o bôto (Phocoena phocoena) e o golfinho-riscado (Stenella coeruleoalba), enquanto que em termos de tartarugas-marinhas são a tartaruga-comum (Caretta caretta) e a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea).

UP: Como é feita a resposta a um arrojamento? Quais são os passos principais no processo?

O primeiro passo é a notificação do arrojamento que pode ser feita por qualquer pessoa que observe o evento. Neste momento tentamos reunir o máximo de informações possíveis sobre o arrojamento, como:

– Qual o animal que arrojou: golfinho, baleia, tartaruga;

– Estado do animal: vivo ou morto;

– Descrição do animal: vivo – por exemplo, se tem alguma lesão, se está preso; morto – qual o grau de decomposição;

– Coordenadas: para sabermos o local exato onde o animal arrojou e não perdermos tempo na procura do animal (este fator é especialmente importante no caso de um arrojamento vivo);

– Fotografias.

Após a recolha da informação referida acima, a equipa da RALVT desloca-se o mais rapidamente possível ao local para avaliação da situação. É realizado um exame médico veterinário completo ao animal para avaliar o seu estado de saúde. Os arrojamentos vivos são situações muito complexas, em que cada situação tem particularidades únicas. Por norma, os animais que arrojam vivos nas praias não se encontram nas melhores condições de saúde e, por isso mesmo, nem sempre é possível devolver os mesmos ao oceano. O objetivo será sempre avaliar o estado de saúde dos animais e a viabilidade da sua recuperação/reflutuação. Caso esta não seja possível, são tomadas medidas para reduzir o sofrimento do animal.

Um arrojamento de um animal morto permite a obtenção de dados importantes. A observação destas e recolha de informações/amostras destas espécies no seu habitat natural pode ser difícil, sendo que frequentemente as únicas informações que temos dessas espécies provêm de animais arrojados. No entanto, a quantidade de dados a retirar em cada arrojamento vai depender do estado de decomposição do animal que arrojou. Ainda assim, em situações de elevado estado de decomposição, podem ser recolhidas informações como dados biométricos (por exemplo, tamanho e peso), algumas amostras biológicas e tentar determinar causas de mortalidade.

Tanto os municípios como a Polícia Marítima e Proteção Civil locais, são alertadas em qualquer situação de arrojamento e juntamente com as mesmas agilizamos a recolha e transporte do corpo de animal, de modo a este ser analisado e descartado em condições de segurança e higiene apropriadas que não comprometam a Saúde Pública.

 

 

UP: A atuação da RALVT é mais reativa ou existem também estratégias preventivas na monitorização das espécies?

A nossa atuação é predominantemente reativa, respondendo a alertas de arrojamentos, mas também temos estratégias preventivas. Realizamos monitorizações das praias para identificar arrojamentos antes de estes serem notificados e para planear acessos rápidos, especialmente em praias de difícil acesso.

Além disso, em parceria com o ICNF e a RNES, também realizamos monitorizações da população dos golfinhos do Sado de forma a recolher informação sobre o seu estado, as áreas do estuário que utilizam, as interações e comportamentos (quer individuais, quer coletivos) e da sua dinâmica populacional. O intuito é conseguir avaliar os diferentes fatores críticos para a conservação desta espécie e determinar medidas para a salvaguardar.

UP: Que tipo de apoio técnico ou científico têm disponível no terreno? Há parcerias com universidades ou outras entidades?

A RALVT conta com uma equipa multidisciplinar composta por biólogos e médicos veterinários. Esta abordagem proporciona uma perspetiva mais abrangente e informada perante as situações que enfrentamos no terreno. Para além da nossa equipa, também temos o apoio científico e logístico de diversas entidades como o MARE-ISPA, o ICNF, o Fundo Ambiental e as autoridades locais, como a Polícia Marítima, de modo a garantir uma resposta eficaz. Também desenvolvemos protocolos em colaboração com o Porto d’Abrigo e CRAM em resposta a casos onde é necessário o transporte dos animais para centros de reabilitação.

UP: Como é garantida a segurança e o bem-estar dos animais durante as operações?

Em caso de arrojamento vivo, a segurança dos animais como a dos operadores que têm de manipular o animal é uma prioridade fundamental. Relativamente aos critérios de bem-estar animal, os mesmo são constantemente avaliados pela presença de um médico veterinário. A nossa equipa é formada para agir de maneira rápida e eficaz, usando técnicas especializadas para a manipulação segura dos animais. Quando um animal é encontrado vivo, o objetivo principal é estabilizá-lo e dar-lhe o maior conforto possível, antes de o transportar para um centro de reabilitação, se necessário. Em parceria com o Centro de Reabilitação de Animais Marinhos e com o Porto d’Abrigo do Zoomarine, o transporte dos animais é realizado em veículos especializados para o mesmo juntamente com todos os cuidados inerentes ao transporte destes animais.

UP: O que indicam os registos de arrojamentos sobre a saúde dos ecossistemas marinhos da região?

Os registos de arrojamentos podem oferecer informações valiosas sobre a saúde dos ecossistemas marinhos. Quando analisamos padrões de arrojamentos, podemos identificar possíveis desequilíbrios no ambiente, como a presença de poluentes, sobrepesca das populações de espécies predadas ou incidência de doenças. As necrópsias realizadas nos animais mortos permitem determinar causas de morte relacionadas a fatores como doenças ou interação com atividades humanas, como a pesca e o tráfego marítimo. Esses dados ajudam a orientar as políticas de conservação e os esforços para melhorar as condições do ambiente marinho.

UP: Quais são os fatores mais comuns que levam ao arrojamento de mamíferos e répteis marinhos?

Geralmente, podemos dividir as causas de arrojamentos em duas áreas: fatores naturais, como a idade dos animais (por exemplo, animais muito jovens têm dificuldade em sobreviver sozinhos) e a presença de doenças que debilitem o estado do animal/causem a sua morte; e os fatores humanos, como é o caso da pesca acidental e as colisões com embarcações. Existe ainda a possibilidade de ambos estes fatores estarem interligados e resultarem na debilidade e/ou morte do animal (por exemplo, habitats degradados por poluentes que comprometam o sistema imunitário dos animais e os tornem mais suscetíveis a agentes patogénicos que provoquem doença). Em 2024, na nossa zona, verificámos que uma das causas mais comuns de mortalidade em casos em que foi possível fazer a sua determinação foi a pesca acidental (bycatch).

Voluntários a ajudarem numa nercópsia a uma baleia-anã

Foto: Necrópsia da Baleia-anã | LuisQuinta©

 

UP: Há espécies em particular que estejam mais vulneráveis ou em risco na vossa área de intervenção?

Na região do estuário do Sado habita a população de roazes (Tursiops truncatus), a única população residente de cetáceos em Portugal Continental. Esta população encontra-se fragilizada, pois é uma população pequena, sensível a alterações ambientais e pressões antropogénicas. A maioria da população é composta por adultos com algum grau de envelhecimento, o que promove uma redução na taxa de reprodução e consequente diminuição do número de nascimentos.

UP: A RALVT desenvolve iniciativas de sensibilização junto das comunidades locais? Que tipo de ações têm mais impacto?

Sim, a RALVT desenvolve várias iniciativas de sensibilização para as comunidades locais, com o objetivo de promover a literacia do oceano. Realizamos atividades de educação ambiental, como palestras, workshops e sessões virtuais, onde as pessoas podem aprender mais sobre a biologia e ecologia das espécies marinhas com as quais trabalhamos e como ajudar em casos de arrojamento.

Também contamos com programas de voluntariado e estágios para estudantes e profissionais da área da Biologia e Medicina Veterinária, ou áreas similares. Adicionalmente, também realizamos limpezas de praia em parceria com diferentes organizações de forma a fazer chegar o trabalho da RALVT a mais pessoas ao mesmo tempo que ajudamos preservar os nossos oceanos.

 

Ação de Limpeza na Praia das Maçãs (Sintra)

 

UP: Como é que a sociedade pode contribuir para a redução dos arrojamentos?

O público em geral pode contribuir de diversas formas. A principal forma é ficar atenta a qualquer sinal de arrojamento e comunicar rapidamente à RALVT ou às autoridades locais. Além disso, a redução da poluição, especialmente plásticos e substâncias tóxicas no mar, e a adoção de um estilo de vida alinhado com práticas de pesca sustentável, são fundamentais para diminuir o impacto das atividades humanas sobre as espécies marinhas. A educação e sensibilização sobre o respeito pelos habitats marinhos, nomeadamente associado a atividades recreativas, também são essenciais para a preservação destas espécies.

O apoio da população em geral é fundamental também na denúncia de situações que contribuam para a degradação dos ecossistemas e que auxiliem organizações como é o caso da RALVT a aumentar a quantidade de dados recolhidos de forma científica e que podem ser apresentados às autoridades competentes para reforçar medidas de mitigação dos conflitos.

UP: Existe algum tipo de formação ou voluntariado para quem queira colaborar com a RALVT?

Sim, a RALVT tem um programa de voluntariado em que oferece formação aos voluntários onde abordamos temas como identificação de espécies, boas práticas e protocolos de resposta a arrojamentos e realização de necrópsias. Neste programa os voluntários têm a possibilidade de participar ativamente na realização das necrópsias, dando-lhes a oportunidade de trabalharem diretamente com estas espécies.

Para além do nosso programa de voluntariado, também desenvolvemos vários tipos de formações, através do formato de palestras e workshop, para instituições universitárias.

Recentemente, começámos também a participar na realização de atividades de “job shadowing” para jovens do ensino secundário, como forma de auxiliar na escolha de futuras carreiras profissionais.

UP: Quais são os maiores desafios que enfrentam atualmente, tanto a nível operacional como em termos de financiamento?

Um dos maiores desafios é a escassez de recursos financeiros para cobrir as despesas de transporte, equipamentos e pessoal especializado. Além disso, a logística de responder a arrojamentos em locais remotos pode ser difícil e exige equipas bem treinadas e bem equipadas.

A ausência de um centro de reabilitação para animais marinhos na zona centro de Portugal Continental também é um grande constrangimento uma vez que atualmente para transportar um animal marinho para um centro de recuperação apenas temos duas possibilidades: o Centro de Reabilitação de Animais Marinhos, em Ílhavo, e o Porto d’Abrigo do Zoomarine, na Guia. Para um animal que já esteja debilitado, um transporte de longa distância pode ser extremamente stressante e comprometer o estado de saúde de modo a inviabilizar a recuperação desse animal.

UP: Existe algum plano de expansão ou novas metodologias que gostassem de implementar no futuro?

É objetivo da RALVT contar com um espaço dedicado que apresente instalações apropriadas para a realização de necrópsias aos animais arrojados, desenvolvimento de projetos de investigação e espaços para receber o público e promover literacia dos Oceanos. Para além destas valências, ambicionamos a construção de um centro de reabilitação de animais aquáticos na zona de Lisboa e Vale do Tejo, colmatando a ausência da mesma na região. Estamos, para isso, a desenvolver esforços com parceiros institucionais de forma a conseguir implementar estes objetivos. Contudo, as limitações financeiras dificultam este processo, sendo necessário garantir que os esforços resultem num projeto com viabilidade a longo prazo.

UP: Que mensagem gostariam de deixar para os cidadãos sobre a importância de preservar a fauna marinha?

A preservação da fauna marinha é essencial para a saúde dos oceanos e para a manutenção do equilíbrio ecológico. Os oceanos são fundamentais para a vida no planeta e para o nosso bem-estar, e as espécies marinhas desempenham um papel crucial nesse equilíbrio. Cada pequeno gesto, como reduzir a utilização de plásticos, apoiar práticas de pesca sustentável e comunicar casos de arrojamentos para melhorar a conservação das espécies, pode fazer a diferença. Contamos com todos para proteger as nossas costas e os nossos mares, para que possamos deixar um legado de conservação para as gerações futuras.

 

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