Leões criados para morrer: o comércio de ossos de leão entre a África do Sul e a China
A África do Sul é o maior exportador legal do mundo de ossos e esqueletos de leão. Entre 2008 e 2015, o Departamento de Assuntos Ambientais sul-africano (DEA) concedeu licenças para a exportação de mais de 5360 esqueletos de leões, sendo que quase 98% deles tiveram como destino países asiáticos.
“Existem quase 8000 leões a definhar em mais de 200 instalações de reprodução na África do Sul. Estes animais são criados cinicamente com o único propósito de gerarem dinheiro”, disse Will Travers, presidente e cofundador da Born Free Foundation, cujo relatório salienta o papel do governo da África do Sul no comércio de partes de leão.
“Os turistas impulsionam involuntariamente esta indústria desprezível ao participarem em atividades como passear com leões e acariciar crias, ao mesmo tempo que os voluntários criam os filhotes de leão sem suspeitas, acreditando erradamente que os animais vão ser libertados na natureza. Quando atingem a idade adulta, muitos destes animais são transferidos para estabelecimentos de caça para que sejam mortos em espaços cercados por ‘caçadores desportivos’. Os seus ossos são depois vendidos num comércio internacional sancionado pelo governo sul-africano”, explicou.
Em 2017, a ministra do Ambiente, Edna Molewa, aprovou uma quota de exportação anual de 800 esqueletos de leões criados em cativeiro. Esta medida foi criticada por muitos conservacionistas e organizações. “Os lucros estão a ser colocados à frente da gestão saudável e ética da vida selvagem”, acusou o novo relatório da Born Free Foundation.
“A cruel realidade é que os emblemáticos leões da África do Sul são comercializados a uma escala industrial para satisfazerem a procura insaciável da China pelos seus ossos”, disse Ian Michler, membro da equipa por trás do documentário Blood Lions (“Leões de Sangue”).
Foto: Ian Michler/Blood Lions
Qual é a obsessão da China e do Vietname com estes ossos?
Os comerciantes asiáticos começaram a interessar-se pelos leões africanos após o declínio drástico verificado nos números de tigres na natureza, cujas partes corporais são usadas na medicina tradicional chinesa há mais de 1000 anos. Os ossos destes grandes felinos são transformados em pó e depois usados em comprimidos, emplastros e em diversas preparações medicinais.
A coroa vai, no entanto, para o vinho de osso de tigre, que a medicina tradicional chinesa apregoa como uma cura para diversos problemas de saúde, incluindo úlceras, cãibras, reumatismo, malária e impotência. Para o seu fabrico, os ossos são mergulhados em vinho de arroz. Quantos mais anos for deixado em amadurecimento, mais elevado será o preço da garrafa.
Apesar da ausência de provas científicas que corroborem as suas supostas propriedades curativas, esta bebida é muito popular e os seus produtores estão agora a usar ossos de leão para substituir os outrora fornecidos pelos tigres.
O esqueleto de um tigre mergulhado em vinho de arroz na China | Foto: International Tiger Coalition
“Não há qualquer dúvida de que a procura por ossos de tigre contribuiu para a quase dizimação das populações de tigres selvagens e há uma profunda preocupação de que a substituição pelos ossos de leão nesta cadeia de fornecimento possa acelerar o declínio das populações de leões selvagens”, declarou a equipa do Blood Lions.
O relatório revela as próprias dúvidas do DEA relativamente à criação de leões em cativeiro. “O próprio DEA reconhece que apenas tem uma compreensão limitada da estrutura económica da criação de leões e do comércio de ossos e também de que não possui informação científica que prove que a indústria tem qualquer valor a nível da conservação da espécie. Vários grupos de conservação e cientistas também fizeram notar que não existe um sistema independente de monitorização do bem-estar dentro da indústria”, diz o estudo.
Segundo a Sociedade para a Prevenção de Crueldade contra Animais (SPCA), terão sido mortos mais de 50 leões em apenas dois dias numa quinta na província sul-africana do Estado Livre, durante a última semana de abril. Os inspetores da SPCA, que vão apresentar uma denúncia formal, disseram ter-se deparado com uma cena “deplorável” na quinta, que descreveram como um “matadouro de leões”.
“Foi terrível. Para mim, o leão é um animal imponente, majestoso. E aqui está ele a ser esquartejado por pessoas só para ganharem dinheiro. É absolutamente repugnante”, disse Reinet Meyer, inspetora da SPCA.
O relatório da Born Free Foundation também chama a atenção para a relação entre a exportação de troféus e produtos de leões criados em cativeiro e o tráfico ilegal de outros produtos de vida selvagem e concluiu que, se o país quiser mostrar que se importa com a segurança da sua vida selvagem, assim como com a do resto do mundo, “são necessárias medidas urgentes para acabar com a criação de leões em cativeiro, a ‘canned hunting’ [caça desportiva num espaço cercado] e a venda dos ossos e esqueletos destes animais”.